sábado, 30 de julho de 2011

Vamos pensar um pouco... O ato de ler e o perigo da automatose mental

José Fernandes
QUANDO EU ERA CRIANÇA, por diversas vezes escutei os adultos dizerem que estudar demais fazia a pessoa ficar doida. Eu, porém, nunca conseguia acreditar naquilo. Na minha cabeça, quanto mais uma pessoa estudasse, melhor ela ficaria, sempre, e em todos os sentidos. Só depois de adulto, especificamente depois de ter passado pela faculdade, é que fui ver que os antigos tinham sua parcela de razão. Descobri que muitas pessoas que leem muito adquirem automatose mental, isto é, uma espécie muito comum de estupidez.

Como identificar uma pessoa portadora de automatose mental ligada à leitura? Basta você observar o seguinte: Faça perguntas à pessoa. Se, para responder, ela iniciar as frases sempre dizendo expressões do tipo: “Segundo fulano de tal...”, “De acordo com sicrano...” ou “Conforme estabelece beltrano...” e se em momento algum essa pessoa disser a resposta segundo o pensamento dela mesma, isso é um forte indício de que ela poderá estar sofrendo da doença.

O termo “automatose” derivada da junção de “autômato” (ser que age como máquina, sem raciocínio e sem vontade própria) mais “-ose” (sufixo usual em linguagem científica para designar “ação”). A pessoa está com automatose mental quando sua mente age desse modo.


A prática da leitura, quando é exercida de maneira saudável, deve produzir no leitor o efeito de fazê-lo pensar e, daí, construir o seu próprio discurso. Repetir, simplesmente, aquilo que foi lido é um processo doentio da mente, que nada tem a ver com conhecimento, menos ainda com sabedoria, que é saber o que fazer com o conhecimento que se possui. Eu disse que a leitura deve produzir o efeito de fazer o leitor pensar. 

Esclareçamos, de vez, um ponto: pensar é diferente de ter pensamentos. E a diferença está, precisamente, em que ter pensamentos significa apenas deixar que ideias prontas, já pensadas por alguém antes de mim, simplesmente venham à minha mente. Trata-se de uma mera lembrança, e quando eu verbalizo essa lembrança não faço outra coisa senão uma mecânica e inútil repetição.

Pensar não é isso. Pensar é aquela capacidade que tenho de formular minhas próprias ideias depois de ter lido tudo o que li e, principalmente, depois de ter esquecido tudo o que li. Sim, o leitor não deve escandalizar-se com esse elogio ao esquecimento, pois o ato de esquecer é fundamental para alguém que queira realmente aprender alguma coisa. 

Parece paradoxal, mas enquanto não esquecemos o que lemos, aquilo que está na nossa cabeça não é conhecimento nosso, mas, sim, dos outros. São os pensamentos dos outros que povoam a nossa mente e, enquanto eles estiverem lá, não conseguiremos pensar. No máximo, teremos pensamentos. Pensar é uma autonomia que alcançamos para lidar com o conhecimento por nossa própria conta e à nossa maneira.

Observe, por exemplo, o maestro João Carlos Martins quando rege uma orquestra ou toca um piano. Ele parece entrar em estado de êxtase. É um dos maiores músicos do mundo, mas quando está em ação a sua mente não se lembra de nada sobre as lições de Música que estudava seis horas por dia no Liceu Pasteur, desde os onze anos de idade. O médico que acaba de operar um coração não seria capaz de citar, naquele instante, as referências bibliográficas de onde ele aprendeu tudo o que ali aplicou para salvar aquela vida. O escritor, enquanto escreve, nem se recorda de que exista uma coisa chamada gramática.

O modelo clássico de ensino que temos, e que entre nós predomina, é aquele que adestra o aluno para que este aprenda a ter pensamentos e, não, para que aprenda a pensar. Senão, vejamos: se você copia de um autor, pode vir a ser processado por plágio; mas, se você copia de vários autores, pode vir a ser aprovado com louvor num curso de pós-graduação. Certa vez, quando eu cursava Letras, tive a ousadia de incluir uma ideia realmente minha no conteúdo de um trabalho de Literatura que eu apresentaria oralmente para turma. 

Na hora da apresentação, quando eu mencionava esse trecho de ideias que não eram copiadas de livro algum, a professora pareceu transtornar-se, interrompeu-me e perguntou-me: “De onde você tirou isso?”. Mas, por sorte minha, ela não chegou a repreender-me por aquela heresia nem me deu nota baixa e, por fim, até gostou do que eu disse. Mas levei um grande susto com a expressão de espanto que ela fez diante daquele fenômeno incomum que era um aluno trazer alguma ideia que tivesse sido pensada com a sua própria cabeça e, não, como de costume, apenas recortada de algum livro.

Evidentemente, tudo o que dissermos já terá sido, um dia, dito por alguém antes de nós, só que de outras maneiras. Renato Russo compôs a letra da música Quase sem querer, e nela ele diz:

                    Sei que, às vezes, uso
                    Palavras repetidas,
                    Mas quais são as palavras
                    Que nunca são ditas?

A bem da verdade, o que se repete, de fato, são os temas, pois o meu discurso, esse ninguém mais o possui além de mim. É um evento único. Posso partir de ideias que não são minhas e ampliá-las, formando, então, uma nova proposta, essa, sim, originalmente minha. Posso citar quantos autores eu quiser, desde que essas citações estejam cumprindo o seu devido papel, que é o de reforçar um discurso propriamente meu que esteja em desenvolvimento.

Uma das metas fundamentais da educação escolar deveria ser a de orientar o indivíduo para que este aprendesse a pensar e, assim, construísse o seu próprio discurso. O que temos, entretanto, são gerações e gerações de estudantes não exatamente pensando, mas esforçando-se por conseguir guardar na memória o máximo de ideias de outros para reproduzi-las depois. 

Assim faz o candidato ao curso de doutorado que, diante do entrevistador, descreve com precisão cada detalhe das teorias dos livros da bibliografia recomendada, mas, se o entrevistador pergunta-lhe qual a opinião pessoal dele sobre algum ponto daquelas teorias todas, ele engole em seco, as pernas tremem, sua palestra torna-se murcha e ele fica sem a vaga; semelhante fenômeno é o que ocorre quando o vento derruba a partitura do músico, e a plateia fica sem música; tal qual experiência se repete quando religiosos abordam-me para ganhar a minha alma e desatam recitações de textos da Bíblia, indicando, sem pestanejar, os capítulos e até os versículos, mas, se questiono algum ponto do que leem, perdem a fala e deixam-me sem salvação.

Se um médico que esteja lendo esse texto agora sentir-se intrigado com essa doença que aqui menciono sob o nome de automatose mental, não será sem razão. É que essa doença não está catalogada pela Medicina e nem mesmo essa palavra “automatose” existe em dicionários. São criações minhas. Afinal, se estou falando em pensar com autonomia, tenho que ser o primeiro a dar o exemplo.
Autor: José Fernandes - publicado originalmente no site
http://www.escritorjosefernandes.com, em 31 de julho de 2011

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